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Primeiro Capítulo: O Homem Mais Rico da Babilônia

Primeiro Capítulo: O Homem Mais Rico da Babilônia

O Homem que Desejava Ouro

O Homem Mais Rico da Babilônia Texto Integral
113 páginas

ISBN:


Preço: R$ 9,90

Bansir, o construtor de carruagens de guerra da Babilônia, estava completamente desanimado. Sentado no muro baixo que cercava sua propriedade, ele olhava tristemente para sua casa simples e para a oficina aberta em que se encontrava uma carruagem parcialmente construída.

Sua esposa frequentemente aparecia na porta aberta. Seus olhares furtivos em sua direção lembravam-lhe que o saco de alimentos estava quase vazio e que ele deveria estar trabalhando para terminar a carruagem, martelando e cortando, polindo e pintando, esticando firmemente o couro sobre as rodas, preparando-a para a entrega, para que pudesse receber do seu rico cliente.

No entanto, seu corpo gordo e muscular sentou-se estupidamente em cima da mureta. Sua mente lenta lutava pacientemente com um problema para o qual ele não conseguia encontrar resposta. O sol quente e tropical, tão típico deste vale do Eufrates, batia impiedosamente sobre ele. Gotas de suor formavam-se em sua testa e escorriam despercebidas até perderem-se na selva peluda de seu peito.

Além de sua casa, erguia-se a alta parede em terraços que cercava o palácio do rei. Próximo, cortando os céus azuis, estava a torre pintada do Templo de Bel. Na sombra de tal grandiosidade, ficava sua casa simples e muitas outras muito menos arrumadas e bem cuidadas. Babilônia era assim — uma mistura de grandiosidade e miséria, de riqueza deslumbrante e pobreza extrema, amontoadas sem plano ou sistema dentro das paredes protetoras da cidade.

Atrás dele, se ele tivesse se importado em se virar e olhar, as carruagens barulhentas dos ricos se espremiam e empurravam os comerciantes de sandálias, assim como os mendigos descalços. Até mesmo os ricos eram obrigados a se afastar para as sarjetas para dar passagem às longas filas de carregadores-escravos de água, a serviço do "Rei", cada um carregando um pesado odre de pele de cabra para ser derramado nos jardins suspensos.

Bansir estava tão envolvido em seu próprio problema que não ouviu nem prestou atenção no burburinho confuso da cidade movimentada. Foi o inesperado som de cordas vibrando de uma lira familiar que o despertou de seus devaneios. Ele se virou e olhou para o rosto sensível e sorridente de seu melhor amigo — Kobbi, o músico.

"Que os Deuses te abençoem com grande liberalidade, meu bom amigo", começou Kobbi com uma elaborada saudação. "No entanto, parece que já foram tão generosos contigo que não precisas trabalhar. Eu me alegro contigo em tua boa fortuna. Mais ainda, eu até mesmo dividiria isso contigo. Por favor, do teu bolso, que deve estar abarrotado senão estarias ocupado em tua loja, retira apenas dois humildes shekels e empresta-os para mim até depois do banquete dos nobres esta noite. Não sentirás falta deles antes de serem devolvidos."

"Se eu tivesse dois shekels", respondeu Bansir sombriamente, "eu não poderia emprestá-los a ninguém, nem mesmo a ti, meu melhor amigo; porque eles seriam minha fortuna — toda a minha fortuna. Ninguém empresta toda a sua fortuna, nem mesmo para seu melhor amigo".

"O que", exclamou Kobbi com genuína surpresa, "Tu não tens um shekel em tua bolsa, mas sentas como uma estátua sobre uma mureta! Por que não terminas aquela carruagem? Como mais poderás prover para teu nobre apetite? Esta atitude não se parece com você, meu amigo. Onde está a tua energia interminável? Algo te aflige? Os Deuses te trouxeram problemas?"

"Deve ser um tormento dos Deuses", concordou Bansir. "Começou com um sonho, um sonho sem sentido, no qual eu pensei que era um homem de posses. Do meu cinto pendia uma bolsa elegante, pesada com moedas. Havia shekels que eu lançava com liberdade descuidada aos mendigos; havia peças de prata com as quais eu comprava adornos para minha esposa e tudo o que eu desejava para mim mesmo; havia peças de ouro que me faziam sentir seguro do futuro e sem medo de gastar a prata. Um sentimento glorioso de contentamento estava dentro de mim! Tu não terias me reconhecido como teu amigo trabalhador. Nem terias reconhecido minha esposa, tão livre de rugas era seu rosto e brilhante com felicidade. Ela era novamente a jovem sorridente de nossos primeiros dias de casados."

"Um sonho agradável, de fato", comentou Kobbi, "mas por que sentimentos tão agradáveis como esses te transformaria em uma estátua sombria no muro?"

"De fato! Quando acordei e lembrei-me de quão vazia estava minha bolsa, um sentimento de rebeldia me invadiu. Vamos conversar juntos sobre isso, pois, como dizem os marinheiros, navegamos no mesmo barco, nós dois. Quando éramos jovens, fomos juntos aos sacerdotes para aprender sabedoria. Como jovens, compartilhamos os prazeres um do outro. Como homens crescidos, sempre fomos amigos íntimos. Somos súditos contentes de nosso tipo. Ficamos satisfeitos em trabalhar longas horas e gastar nossos ganhos livremente. Ganhamos muito dinheiro nos anos que se passaram, mas para conhecer as alegrias que vêm da riqueza, temos que sonhar com elas. Bah! Somos mais que ovelhas mudas? Vivemos na cidade mais rica de todo o mundo. Os viajantes dizem que ninguém a iguala em riqueza. Ao nosso redor há muita exibição de riqueza, mas nós mesmos não temos nada disso. Depois de metade de uma vida inteira de trabalho árduo, tu, meu melhor amigo, tens uma bolsa vazia e me dizes: 'Posso pedir emprestado tão pouco como dois shekels até depois do banquete dos nobres esta noite?' Então, o que eu respondo? Digo: 'Aqui está minha bolsa; e seu conteúdo compartilharei com prazer?' Não, admito que minha bolsa esteja tão vazia quanto a tua. O que está acontecendo? Por que não podemos adquirir prata e ouro — mais do que suficiente para comida e roupas?

"Deves considerar também, nossos filhos," Bansir continuou, "eles não estão seguindo os passos de seus pais? Eles e suas famílias, assim como seus filhos e suas famílias, devem passar toda a vida no meio desses tesouros e, ainda assim, serem contentes em banquetear com leite de cabra azedo e mingau, como nós?"

"Nunca, em todos os anos de nossa amizade, tu falaste assim antes, Bansir." Kobbi estava confuso.

"Jamais em todos esses anos eu pensei dessa maneira antes. Desde o amanhecer até a escuridão me parar, eu trabalhei para construir os melhores carros que qualquer homem pudesse fazer, esperando de coração mole que um dia os deuses reconheceriam minhas ações dignas e me concederiam grande prosperidade. Isso eles nunca fizeram. Finalmente, percebo que eles nunca farão isso. Portanto, meu coração está triste. Desejo ser um homem de posses. Desejo possuir terras e gado, ter roupas finas e moedas em minha bolsa. Estou disposto a trabalhar por essas coisas com toda a força em minhas costas, com toda a habilidade em minhas mãos, com toda a astúcia em minha mente, mas desejo que meus trabalhos sejam justamente recompensados. Qual é o problema conosco? Eu te pergunto novamente! Por que não podemos ter nossa justa parcela das coisas boas tão abundantes para aqueles que têm ouro para comprá-las?"

"Gostaria de ter uma resposta!" respondeu Kobbi. "Não estou mais satisfeito do que tu. Meus ganhos com minha lira são rapidamente gastos. Muitas vezes, devo planejar e esquematizar para que minha família não passe fome. Além disso, dentro do meu peito há um desejo profundo por uma lira grande o suficiente para que possa realmente cantar as melodias que surgem em minha mente. Com um instrumento assim, poderia fazer música ainda mais fina do que o rei já ouviu antes."

"Tu deverias ter tal lira. Nenhum homem em toda Babilônia poderia fazê-la cantar mais docemente; poderia fazê-la cantar tão docemente que não apenas o rei, mas os próprios Deuses ficariam encantados. Mas como poderias consegui-la enquanto ambos somos pobres como os escravos do rei? Escuta o sino! Aqui vêm eles." Ele apontou para a longa coluna de carregadores de água meio nus, suando e se esforçando para subir a estreita rua do rio. Cinco homens de largura marchavam, cada um curvado sob uma pesada pele de cabra cheia de água.

"O que os lidera é um homem de aparência nobre", disse Kobbi apontando para o homem que usava o sino e marchava na frente sem carregar uma carga. "É fácil de ver que é um homem proeminente em sua própria terra."

"Há muitas boas figuras na fila," concordou Bansir, "homens tão bons quanto nós. Homens altos e loiros do norte, homens negros e alegres do sul, pequenos homens marrons dos países próximos. Todos marchando vindo do rio em direção aos jardins, para frente e para trás, dia após dia, ano após ano. Nada de felicidade para esperar. Camas de palha para dormir e mingau de grãos duros para comer. Coitados dos brutos, Kobbi!"

"Eu até sinto pena deles, mas você me fez perceber que nós, que nos chamamos de homens livres, não estamos muito melhores."

"Isso é verdade, Kobbi, por mais desagradável que seja essa ideia. Nós não queremos continuar ano após ano vivendo vidas de escravidão. Trabalhando, trabalhando, trabalhando! Sem chegar a lugar nenhum."

"Não poderíamos descobrir como outros adquirem ouro e fazer o mesmo?" perguntou Kobbi.

"Talvez haja algum segredo que possamos aprender se procurarmos aqueles que sabem," respondeu Bansir pensativamente.

"Neste mesmo dia", sugeriu Kobbi, "eu encontrei o nosso velho amigo, Arkad, andando em seu carro dourado. Posso dizer que ele não me olhou com superioridade como muitos de sua posição poderiam achar que têm o direito de fazer. Em vez disso, ele acenou para que todos pudessem ver e mostrou seu sorriso amigável."

"Dizem que ele é o homem mais rico de toda Babilônia", refletiu Bansir.

"Tão rico que se diz que o rei busca sua ajuda em assuntos do tesouro", respondeu Kobbi. "Tão rico", interrompeu Bansir, "que eu temo que se eu o encontrasse no escuro da noite, eu colocaria minhas mãos em sua carteira gorda."

"Besteira", repreendeu Kobbi, "a riqueza de um homem não está na bolsa que ele carrega. Uma bolsa gorda esvazia rapidamente se não houver um fluxo constante de ouro para enchê-la. Arkad tem uma renda que constantemente mantém sua bolsa cheia, não importa o quanto ele gaste."

"Renda, é disso que estou falando", exclamou Bansir. "Eu desejo uma renda que continue fluindo para minha bolsa, quer eu esteja sentado na parede ou viajando para terras distantes. Arkad deve saber como um homem pode criar uma renda para si mesmo. Será que ele poderia explicar isso para uma mente tão lenta quanto a minha?"

"Eu acho que ele ensinou seu conhecimento ao filho dele, Nomasir", respondeu Kobbi. "Ele não foi para Nínive e, segundo dizem no albergue, tornou-se, sem a ajuda de seu pai, um dos homens mais ricos daquela cidade?"

"Kobbi, você traz para mim um pensamento raro", disse Bansir com um novo brilho nos olhos. "Não custa nada pedir um conselho sábio de um bom amigo, e Arkad sempre foi isso. Não importa que nossas bolsas estejam tão vazias quanto o ninho do falcão de um ano atrás. Não deixemos que isso nos detenha. Estamos cansados de estar sem ouro em meio à abundância. Queremos nos tornar homens de recursos. Vamos, vamos até Arkad e perguntar como nós também podemos adquirir rendas para nós mesmos."

"Você está falando com muita inspiração, Bansir. Me fez perceber uma coisa importante: nunca ficamos ricos porque nunca nos esforçamos para isso. Você se dedicou a construir as melhores carruagens de Babilônia e teve sucesso nisso. Eu me dediquei a tocar lira com habilidade e também consegui sucesso nisso."

"Nas coisas para as quais nos dedicamos com afinco, tivemos sucesso. Os deuses estavam satisfeitos em nos deixar seguir assim. Mas agora, finalmente, vemos uma luz brilhante como a do sol nascente. Ela nos chama para aprender mais e assim prosperar mais. Com essa nova compreensão, encontraremos maneiras honradas de alcançar nossos desejos."

"Ótima ideia, Bansir", Kobbi concordou. "Vamos procurar Arkad ainda hoje. E também vamos convidar outros amigos de nossa juventude, que não tiveram mais sucesso que nós, para se juntarem a nós e compartilharem de sua sabedoria."

"Sempre foste assim, cuidadoso com teus amigos, Bansir. É por isso que tens tantos amigos. Será como dizes. Vamos ainda hoje e levá-los conosco."

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Primeiro Capítulo: Persuasão

Primeiro Capítulo: Persuasão

Capítulo Um



Persuasão Texto Integral
300 páginas

ISBN:


Preço: R$ 5,05


Sir Walter Elliot, do Solar de Kellynch, em Somersetshire, era um homem que, para se distrair, nunca pegava num livro, com excepção dos Anais dos Baronetes; aí encontrava ele ocupação para as horas de ócio e consolação para as horas tristes; aí sentia ele estimulados o respeito e a admiração, ao contemplar o pouco que restava dos primeiros títulos nobiliárquicos; aí, quaisquer sensações desagradáveis provocadas por assuntos de natureza doméstica transformavam-se naturalmente em pena e desdém. Quando acabava de folhear a quase interminável lista de pares criados no último século – e aí, se todas as outras páginas não surtissem efeito, ele lia a sua própria história com um interesse que nunca esmorecia – chegava à página em que o seu volume favorito era sempre aberto: ELLIOT DO SOLAR DE KELLYNCH.

Walter Elliot, nascido em 1 de Março de 1760, casado em 15 de Julho de 1784, com Elizabeth, filha de James Stevenson, de South Park, condado de Gloucester; desta senhora (falecida em 1800) nasceram Elizabeth, nascida a 1 de Junho de 1785; Anne, nascida a 9 de Agosto de 1787; um filho nado-morto a 5 de Novembro de 1789; Mary, nascida a 2 de Novembro de 1791.

– Fora exatamente assim que o parágrafo saíra originalmente da impressão; mas Sir Walter tinha-o beneficiado, acrescentando estas palavras, na informação sobre si próprio e a sua família: depois da data de nascimento de Mary – casada, em 16 de Dezembro de 1810, com Charles, filho e herdeiro de Charles Musgrove, Esq. de Uppercross, condado de Somerset – e introduzindo, com maior exatidão, o dia do mês em que perdera a mulher.

Depois, seguia-se a história da ascensão da antiga e respeitável família, nos termos habituais; como viera para Cheshire, como era mencionada em Dugdale – ocupando o cargo de xerife, representando a vila em três sessões parlamentares sucessivas; manifestações de lealdade, o título de baronete, no primeiro ano do reinado de Charles II, e todas as Marys e Elizabeths com quem se tinham casado; formando, ao todo, duas belas páginas duodecimal e concluindo com as armas e a divisa: "Residência principal, Kellynch Hall, no condado de Somerset", e de novo a letra de Sir Walter no fim:

Presumível herdeiro, William Walter Elliot, Esq., bisneto do segundo Sir Walter. A vaidade era o princípio e o fim do carácter de Sir Walter: vaidade pela sua pessoa e posição. Ele tinha sido extraordinariamente belo na sua juventude; e, aos 55 anos, ainda era um homem muito atraente. Poucas mulheres se preocupavam mais com o seu aspecto do que ele; nem o criado pessoal de um lorde que tivesse acabado de receber este título se sentiria tão satisfeito com o seu lugar na sociedade. Ele considerava a bênção da beleza inferior apenas à bênção de ser baronete; e Sir Walter Elliot, que possuía ambos os dons, era o objecto constante do seu mais caloroso respeito e admiração.

Ele sentia gratidão pela sua elegância e posição social, pois certamente lhes devia o fato de ter arranjado uma mulher de carácter muito superior ao que o seu próprio carácter merecia.

Lady Elliot tinha sido uma excelente mulher, sensata e dócil, cujo discernimento e conduta, se lhe for perdoada a paixoneta juvenil que fez dela Lady Elliot, nunca, depois disso, mereceram a menor censura. Durante dezassete anos, ela minimizara, escondera ou desculpara os defeitos dele e promovera a sua verdadeira respeitabilidade; e, embora ela própria não fosse a pessoa mais feliz do mundo, acabou por encontrar, nas suas obrigações, nos seus amigos e nas filhas, satisfação suficiente para que tivesse apego à vida e não se sentisse indiferente quando chegou a hora de os deixar. Três meninas, as duas mais velhas com 16 e 14 anos, constituíam uma herança terrível para qualquer mãe deixar; ou, por outra, para confiar à autoridade e orientação de um pai presunçoso e tolo. Ela tinha, porém, uma amiga muito íntima, uma mulher sensata e digna que ela tinha convencido, com a sua grande amizade, a vir viver perto dela, na aldeia de Kellynch; e Lady Elliot confiava sobretudo na sua generosidade e nos seus bons conselhos para ajudar a manter os bons princípios e ensinamentos que ela transmitira empenhadamente às filhas.

Esta amiga e Sir Walter não se casaram, ao contrário do que as suas relações poderiam levar a supor. Passados treze anos sobre a morte de Lady Elliot, ainda eram vizinhos e amigos íntimos; e ele continuava viúvo, e ela, viúva.

O fato de Lady Russell, uma mulher com maturidade de idade e de carácter e com uma situação econômica extremamente boa, não pensar num segundo casamento, não necessita de qualquer justificação perante o público, o qual tende a ficar, absurdamente, mais descontente quando uma mulher volta a casar-se do que quando ela não se casa; mas o fato de Sir Walter continuar viúvo exige uma explicação. Faça-se saber, pois, que Sir Walter, como um bom pai (tendo sofrido uma ou duas desilusões com pretendentes muito pouco razoáveis), orgulhava-se de continuar solteiro por causa da sua querida filha. Por uma filha, a mais velha, ele teria desistido de qualquer coisa, o que não se sentira muito tentado a fazer. Elizabeth tinha, aos 16 anos, sucedido À mãe em direitos e importância, em tudo que era possível, e, sendo muito bonita e muito parecida com o pai, exercera sempre grande influência sobre ele; davam-se muito bem.

As outras duas filhas tinham menor importância. Mary adquirira alguma notoriedade artificial ao tornar-se Sra. Charles Musgrove; mas Anne, com uma elegância de espírito e doçura de carácter que lhe teriam granjeado a admiração de pessoas de discernimento, não era ninguém aos olhos do pai, nem dos da irmã; a sua palavra não tinha qualquer peso; era sempre obrigada a ceder – era apenas Anne.

Para Lady Russell, contudo, ela era uma afilhada predileta e uma amiga muito querida e estimada. Lady Russell gostava delas todas; mas era apenas em Anne que ela imaginava que a mãe pudesse reviver.

Alguns anos antes, Anne Elliot tinha sido uma menina muito bonita, mas cedo perdera a sua frescura; e, como mesmo no seu auge da sua beleza, o pai tinha visto muito pouco nela que fosse digno de admiração (tão diferentes dos dele eram os seus traços delicados e os suaves olhos escuros), agora, que ela estava murcha e magra, não podia haver nada neles que pudesse provocar o seu apreço. Ele nunca tivera muita esperança, e agora não tinha nenhuma, de ler o nome dela em qualquer outra página da sua obra preferida. Toda a esperança de uma aliança de termos de igualdade residia em Elizabeth; pois Mary tinha-se apenas ligado a uma respeitável família rural antiga com uma grande fortuna e tinha, portanto, concedido toda a honra sem ter recebido nenhuma; Elizabeth faria, mais cedo ou mais tarde, um casamento vantajoso.

Acontece, por vezes, que uma mulher é mais bonita aos 29 anos do que dez anos antes; e, de um modo geral, se não se sofreu de doença ou ansiedade, é uma idade em que pouco encanto se perdeu. Era o que se passava com Elizabeth; ainda era a bela Menina Elliot que começara a tornar-se assim treze anos antes; poder-se-á, pois, desculpar Sir Walter por ele se esquecer da idade dela ou, pelo menos, considerá-lo apenas meio tolo, por julgar que ele próprio e Elizabeth conservavam a mesma frescura de sempre, no meio da ruína da beleza de todos os outros, pois ele via claramente como o resto da sua família e os seus conhecidos estavam a envelhecer. Anne, magra, Mary, grosseira, todos os rostos da vizinhança pioravam; e há muito que o rápido aumento dos pés de galinha nas têmporas de Lady Russell o entristecia.

Elizabeth não sentia exatamente a mesma satisfação pessoal que o pai. há treze anos que era senhora de Kellynch Hall, supervisionando e dando ordens com uma autoconfiança e decisão que nunca poderiam ter dado a ideia de ela ser mais nova do que realmente era. Durante treze anos, tinha feito as honras da casa, repreendendo, tomando a dianteira ao dirigir-se para o coche e seguindo imediatamente atrás de Lady Russell ao sair de todas as salas de visitas e de jantar do país. As geadas de treze Invernos tinham-na visto abrir todos os bailes dignos de registo que uma pequena localidade conseguia dar; e, durante treze Primaveras, as plantas tinham mostrado as suas flores quando ela viajava para Londres com o pai, para desfrutar, uma vez por ano, das diversões do grande mundo. Ela lembrava-se de tudo isto, tinha consciência de ter 29 anos, o que lhe provocava alguma pena e apreensão. Sabia que ainda era muito bonita; mas sentia os anos perigosos aproximarem-se, e gostaria de ter a certeza de que um verdadeiro baronete iria pedir a sua mão dentro de um ano ou dois. Nessa altura, talvez voltasse a pegar no livro dos livros com tanto prazer como nos anos da sua juventude; mas, naquele momento, ela não gostava dele. Deparar-se constantemente com a data do seu nascimento e não ver nenhum casamento à frente desta excepto o de uma irmã mais nova tornavam o livro um mal; e, mais de uma vez, depois de o pai o ter deixado aberto em cima da mesa a seu lado, ela tinha-o fechado e empurrado para longe, desviando os olhos.

Além disso, ela sofrera uma desilusão que aquele livro, especialmente a história da sua família, lhe fazia sempre recordar.

O presumível herdeiro, o mesmo William Walter Elliot, Esq., cujos direitos tinham sido tão generosamente apoiados pelo pai, tinha-a desiludido.

Desde menina, desde que soubera que, se não tivesse irmãos, ele seria o futuro baronete, que ela tencionava casar-se com ele; e o pai sempre quisera que ela o fizesse. Eles não o tinham conhecido em pequeno, mas, pouco depois da morte de Lady Elliot, Sir Walter esforçara-se por se aproximar dele e, embora os seus esforços não tivessem sido recebidos com calor, ele insistira em fazê-los, atribuindo a falta de entusiasmo à timidez da juventude; e, numa das viagens de Primavera a Londres, quando Elizabeth acabara de desabrochar, o Sr. Elliot fora-lhe forçosamente apresentado.

Ele era, nessa altura, muito jovem e iniciara recentemente os seus estudos de Direito. Elizabeth achara-o extremamente simpático, e todos os planos a favor dele tinham sido reforçados. Ele fora convidado a ir ao Solar de Kellynch; falaram nele e esperaram-no o resto do ano, mas ele nunca apareceu. Na Primavera seguinte, encontraram-no de novo na cidade, acharam-no igualmente simpático, e foi mais uma vez encorajado, convidado e esperado e, novamente não apareceu; as notícias seguintes foram que ele se tinha casado. Em vez de agir de acordo com a linha traçada para o herdeiro da casa de Elliot, ele comprara a independência unindo-se a uma mulherárica, de nascimento inferior.

Sir Walter ficara ofendido. Como chefe da família, ele achava que deveria ter sido consultado, especialmente depois de o ter acompanhado em público:

– Porque nós devemos ter sido vistos juntos – comentou ele –, uma vez no Tattersal e duas vezes no trio da Casa dos Comuns – O seu desagrado foi manifestado, mas, aparentemente, pouca importância lhe foi atribuída. O Sr. Elliot não tentou apresentar quaisquer desculpas nem mostrou qualquer interesse em ser notado pela família; do mesmo modo, Sir Walter considerou que ele não merecia fazer parte dela; todas as relações entre eles tinham cessado.

Ao fim de vários anos, esta embaraçosa história do Sr. Elliot ainda provocava raiva em Elizabeth, que tinha gostado do homem por ele próprio e ainda mais por ser o herdeiro do pai, cujo forte orgulho familiar via somente nele um partido adequado para a filha mais velha de Sir Walter Elliot. Não havia, de A a X, um baronete que os seus sentimentos reconhecessem tão facilmente como seu igual. No entanto, ele tinha agido tão miseravelmente que, embora usasse atualmente (no Verão de 1814) uma fita de luto pela mulher, ela não punha a hipótese de ele merecer que voltasse a pensar nele. A vergonha do seu primeiro casamento talvez pudesse ser ultrapassada, pois não havia motivo para supor que o mesmo tivesse sido perpetuado através de quaisquer filhos, se ele não tivesse feito pior; mas ele fizera pior, conforme tinham sido informados pela habitual intromissão de amigos amáveis, e falara muito desrespeitosamente de todos eles, e com muito desdém do próprio sangue que lhe corria nas veias e do título que futuramente seria seu. Isto não podia ser perdoado.

Estes eram os sentimentos e as sensações de Elizabeth Elliot; estas eram as preocupações que a incomodavam, a agitação que perturbava a monotonia, a elegância, a prosperidade e o vazio da cena da sua vida – estes eram os sentimentos que conferiam interesse a uma longa e rotineira residência numa pequena localidade, preenchendo o vazio que não podia ser ocupado com hábitos de serviço no estrangeiro nem com talentos ou feitos levados a cabo no país.

Mas, agora, outra ocupação ou preocupação da mente começava a ser adicionada a estas. O pai estava a ficar aflito com falta de dinheiro. Ela sabia que, quando ele agora pegava no registo de baronetes, era para afastar do pensamento as pesadas contas dos comerciantes e as desagradáveis insinuações do Dr. Shepherd, seu procurador. O patrimônio Kellynch era bom, mas não igualava a concepção que Sir Walter fazia da magnificência exigida ao seu dono. Enquanto Lady Elliot fora viva, tinha havido método, moderação e economia, o que mantivera os gastos dentro dos seus rendimentos, mas, juntamente com ela, tinham morrido também todos esses bons princípios e, desde então, ele excedia-os constantemente. Não lhe tinha sido possível gastar menos; ele não tinha feito nada a não ser o que Sir Walter Elliot era obrigado a fazer; mas, embora não tivesse qualquer culpa, ele não só estava a endividar-se terrivelmente como ouvia esse fato referido com tanta frequência que se tornara inútil escondê-lo, mesmo parcialmente, da filha. Chegara a fazer algumas alusões a esse fato na Primavera anterior, na cidade; até tinha dito:

– Será possível economizar? Ocorre-te algum artigo em que possamos poupar?

E Elizabeth, justiça lhe seja feita, tinha, no primeiro ardor de alarme feminino, começado a pensar seriamente no que poderia ser feito e propusera duas linhas de economia: cortar pois algumas ações de caridade desnecessárias e não remodelar a sala de visitas; a essas medidas ela acrescentou mais tarde a feliz ideia de não levar nenhum presente a Anne, como era costume fazerem todos os anos. Mas estas medidas, por muito boas que fossem, mostraram-se insuficientes para a extensão do mal, cuja magnitude Sir Walter se viu obrigado a confessar-lhe pouco depois. Elizabeth não tinha nada de maior eficácia a propor; sentiu-se, tal como o pai, maltratada e infeliz; e nenhum deles conseguiu imaginar meios de diminuir as despesas sem comprometer a sua dignidade nem sem se verem privados do conforto mínimo.

Sir Walter podia vender apenas uma pequena parte dos seus bens; mas, ainda que ele pudesse vender todas as suas terras, isso não teria feito qualquer diferença. Ele tinha concordado em hipotecar tanto quanto lhe fora possível, mas nunca concordaria em vender. Nunca faria recair tamanha vergonha sobre o se nome. O patrimônio Kellynch seria transmitido completo e integral, tal como o recebera.

Foi pedido aos seus dois amigos íntimos, o Dr. Shepherd, que vivia na cidade vizinha onde o mercado se realizava, e Lady Russell, que viessem aconselhá-los; e, tanto o pai como a filha, pareciam esperar que um ou outro tivesse uma ideia que fizesse desaparecer os seus problemas e reduzisse as despesas sem que isso acarretasse o sacrifício da satisfação dos seus prazeres ou do orgulho.

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Primeiro Capítulo: O Homem Invisível

Primeiro Capítulo: O Homem Invisível

Capítulo

1
A CHEGADA DO ESTRANHO


O Homem Invisível Texto Integral
190 páginas

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Preço: R$ 5,05

O estranho chegou no início de fevereiro, em um dia gélido, arrostando o vento cortante e a neve que não cessava de cair, a última nevada do ano. Caminhava pela colina, vindo, ao que parecia, da estação da estrada de ferro de Bramblehurst e segurava uma pequena valise negra na mão calçada com uma luva grossa. Estava agasalhado da cabeça aos pés e a aba do chapéu de feltro macio ocultava-lhe cada centímetro do rosto, exceto a ponta brilhante do nariz; a neve tinha se acumulado em seus ombros e peito, acrescentando uma orla branca ao peso que carregava. Cambaleando, entrou na "Coach and Horses", aparentemente mais morto do que vivo e deixou cair a maleta. — Fogo — implorou — por caridade! Um quarto e fogo! — Batendo com os pés no chão, sacudiu a neve no bar e seguiu a sra. Hall até a sala de visitas, para falar de negócios. E, com aquela preliminar e mais a concordância imediata quanto às condições, além de um par de soberanos jogados sobre a mesa, tomou aposentos na estalagem.

A sra. Hall acendeu o fogo e deixou-o lá, saindo a fim de preparar-lhe, ela mesma, uma refeição. Um hóspede que vinha a Iping no inverno já era uma sorte extraordinária, ainda mais um hóspede que não barganhava, e estava disposta a mostrar-se digna de tal felicidade. Logo que o bacon começou a fritar e Millie, a apática empregada, espertou um pouco, graças a algumas expressões bem escolhidas de desdém, levou a toalha, pratos e copos para a sala e começou a arrumá-los com o maior éclat. Embora o fogo estivesse ardendo vivamente, ficou surpresa ao ver que o visitante ainda estava de chapéu e casaco, de pé, dando-lhe as costas e contemplando, através da janela, a neve que caía no pátio. Suas mãos enluvadas entrelaçavam-se atrás e parecia absorto em pensamentos. Observou que a neve derretida que ainda lhe salpicava os ombros estava pingando no tapete. — Posso pegar seu chapéu e casaco, senhor — disse —, e secá-los bem na cozinha?

— Não — respondeu ele, sem se voltar.

Sem muita certeza de tê-lo ouvido, estava prestes a repetir a pergunta.

Então ele virou a cabeça e olhou-a por cima do ombro. — Prefiro continuar assim — disse, enfaticamente, e ela notou que usava grandes óculos escuros com protetores laterais, e que bastas suíças sobre a gola do casaco escondiam-lhe completamente o rosto.

— Muito bem, senhor — replicou. — Como quiser. Daqui a pouco a sala estará mais quente.

O estranho não respondeu e desviou novamente o rosto; e a sra. Hall, percebendo que suas tentativas de conversa eram inoportunas, acabou de pôr a mesa com movimentos bruscos e rápidos e apressou-se a sair da sala. Quando voltou, ele ainda estava de pé no mesmo lugar, como um homem de pedra, as costas encurvadas, a gola voltada para cima e a aba gotejante do chapéu virada para baixo, ocultando-lhe por completo o rosto e as orelhas. Pousou o prato de ovos e bacon sobre a mesa com um alarido considerável e elevou a voz, em vez de falar com naturalidade. — Seu almoço está servido, senhor.

— Obrigado — retrucou ele de pronto e não se moveu até que ela fechasse a porta. Só então deu meia-volta e aproximou-se da mesa.

Quando a sra. Hall passou por trás do bar, para ir até a cozinha, ouviu um som que se repetia a intervalos regulares. Crique, crique, crique, continuava, o som de uma colher mexida rapidamente em círculos, dentro de uma vasilha. — Aquela garota! — exclamou. — Vejam só! Esqueci-me completamente da mostarda. É a moleza dela! — E, enquanto acabava de bater a mostarda pessoalmente, deu algumas alfinetadas verbais em Millie, por sua excessiva lerdeza. Tinha cozido o presunto e os ovos, posto a mesa e tudo o mais, enquanto Millie (que ajudante!) nem conseguira aprontar a mostarda. E ele, um novo hóspede, querendo ficar! Encheu o pote de mostarda e colocando-o, com certa solenidade em uma bandeja de chá dourada e preta, levou-o até a sala.

Bateu e entrou em seguida. Ao fazê-lo, o hóspede moveu-se rapidamente, de tal forma que apenas conseguiu ver, de relance, um objeto branco desaparecendo por baixo da mesa. Parecia que ele estava apanhando alguma coisa do chão. Com um ruído seco, pôs o pote de mostarda sobre a mesa e, então, notou que o sobretudo e o chapéu tinham sido tirados e colocados em uma cadeira diante do fogo. Um par de botas molhadas ameaçava enferrujar o guarda-fogo de aço da lareira. Resolutamente, dirigiu-se para as peças de vestuário. — Acho que agora posso levá-las para secar — disse, em um tom que não admitia contestação.

— Deixe o chapéu — disse o hóspede em voz abafada e ela, voltando-se, viu que tinha erguido a cabeça e estava sentado, observando-a.

Por um momento ficou imóvel, olhando-o, de boca aberta, demasiado surpresa para falar.

Segurava um pano branco — um guardanapo que trouxera — diante da porção inferior do rosto, de forma a encobrir a boca e maxilares, o que explicava a voz surda. Mas não fora isso o que espantara a sra. Hall, e sim o fato de que toda a testa, acima dos óculos azuis, estava envolta em uma atadura branca, e outra lhe encobria as orelhas, sem deixar nem um pedaço de rosto à mostra, a não ser o nariz rosado e pontiagudo. Este era de um rosa claro e brilhante, exatamente como parecera desde o princípio. Vestia um paletó de veludo castanho-escuro, com uma gola alta forrada de linho preto virada para cima, em volta do pescoço. O cabelo espesso e negro, soltando-se como podia embaixo e entre as ataduras que se cruzavam, projetava-se formando caudas e chifres esquisitos, dando-lhe a aparência mais estranha que se poderia conceber. Aquela cabeça tapada e envolta em bandagens era tão diferente do que seria capaz de imaginar que, por um momento, ficou rígida.

Ele não baixara o guardanapo e ficara segurando-o, como via agora, com a mão enluvada e castanha, fixando-a com seus impenetráveis óculos azuis. — Deixe o chapéu — repetiu, falando distintamente através do guardanapo branco.

Os nervos dela começavam a recuperar-se do choque que haviam sofrido. Recolocou o chapéu sobre a cadeira perto do fogo.

— Não sabia, senhor — começou — que... — e calou-se, desconcertada.

— Obrigado — disse ele secamente, olhando dela para a porta e depois para ela novamente.

— Vou secá-las muito bem, imediatamente, senhor — falou, levando as roupas do aposento. Relanceou outra vez para a cabeça enfaixada de branco e para os óculos azuis, enquanto ia saindo; mas o guardanapo ainda se mantinha diante do rosto dele. Sentiu um, pequeno calafrio ao fechar a porta e sua expressão demonstrava claramente surpresa e perplexidade. — Nunca — sussurrou.

— Que coisa! — Dirigiu-se para a cozinha, silenciosamente, e tão preocupada estava que, ao chegar, nem lhe ocorreu perguntar a Millie que trapalhada fazia no momento.

O visitante permaneceu sentado, atento aos passos que se afastavam. Olhou atentamente para a janela, antes de tirar o guardanapo e recomeçar a refeição. Comeu um pouco, lançou um olhar desconfiado para a janela, comeu mais um pouco, depois levantou-se e, com o guardanapo na mão, atravessou o aposento e desceu a persiana até a musselina branca que resguardava as vidraças inferiores. Isso deixou a sala na penumbra. Depois, com um jeito mais tranquilo, voltou à mesa e à sua refeição.

— O pobre coitado sofreu um acidente ou fez uma operação ou qualquer coisa semelhante — disse a Sra. Hall. — Puxa! Que susto me deram aquelas ataduras!

Pôs um pouco mais de carvão no fogo, desdobrou o cabide de pé e pendurou o casaco do viajante. — E aqueles óculos! Ora, ele parece mais um escafandro do que um homem de verdade! — Pendurou o cachecol em uma extremidade do cabide. — Segurando aquele guardanapo em cima da boca o tempo todo. Falando através dele!... Talvez a boca também tenha sido ferida — talvez.

Deu uma viravolta, como alguém que, de repente, lembra-se de algo. — Deus me abençoe! — exclamou, mudando bruscamente de assunto; — você ainda não fez as batatas, Millie?

Quando a Sra. Hall foi tirar a mesa do almoço, sua impressão de que a boca do estranho devia ter sido cortada ou desfigurada no acidente que supunha que sofrerá foi confirmada, pois ele estava fumando um cachimbo e, durante todo o tempo em que permaneceu na sala, nem uma vez afrouxou o cachecol de seda no qual havia enrolado a parte inferior do rosto para levar a boquilha aos lábios. Isso, no entanto, não era por distração, pois observou que a olhava de vez em quando, vendo-a soltar fumaça. Estava sentado em um canto, de costas para a persiana e, tendo comido e bebido, e estando confortavelmente aquecido, falou com menos daquela agressividade lacônica de antes. O reflexo do fogo emprestava aos grandes óculos uma espécie de vivacidade com toques avermelhados que até então lhes faltara.

— Tenho alguma bagagem na estação de Bramblehurst — disse, e perguntou-lhe como poderia fazer para que a mandassem. Educadamente, inclinou a cabeça enfaixada para demonstrar que agradecia a explicação dela. — Amanhã! — protestou. — Não há uma entrega mais rápida? — e pareceu desapontado quando ela lhe respondeu — Não. — Tinha certeza? Não havia nenhum homem para ir até lá de charrete?

Sem a menor relutância a Sra. Hall respondeu às perguntas e encetou uma conversa. — A estrada é íngreme pela colina, senhor — disse, respondendo à indagação sobre a charrete; e depois, aproveitando a oportunidade, acrescentou: — Foi lá que uma carruagem virou há mais de um ano. Morreu um senhor, além do cocheiro. Em um instante acontecem acidentes, não é?

Mas o visitante não se deixou levar tão facilmente. — É verdade — concordou, falando através do cachecol e olhando-a calmamente com os óculos impenetráveis.

— Mas levam muito tempo para sarar, não acha, senhor?... Tom, o filho de minha irmã, cortou o braço com uma foice, caiu em cima dela no campo de feno e, Deus me abençoe, ficou três meses sem poder trabalhar, senhor. O senhor mal acreditaria. Isso me deu um verdadeiro horror de foice, senhor.

— Compreendo perfeitamente — disse o visitante.

— Houve uma ocasião em que ficou com medo de ter que fazer uma operação — tão grave era o seu estado, senhor.

O estranho riu inesperadamente, o riso como um latido que ele parecia morder e matar na própria boca. — Ficou?

— Ficou, senhor. E não foi nada divertido para os que cuidaram dele, como eu — já que minha irmã estava tão ocupada com os filhos menores. Havia ataduras a serem colocadas e retiradas, senhor. Por isso, se permite que tenha a ousadia de lhe dizer, senhor...

— Pode me arranjar fósforos? — interrompeu o visitante asperamente. — Meu cachimbo apagou.

A Sra. Hall calou-se prontamente. Decerto que era uma grosseria da parte dele, depois de ter-lhe contado tudo o que fizera. Olhou-o ofegando por um segundo e lembrou-se dos dois soberanos. Saiu para buscar os fósforos.

— Obrigado — disse ele secamente, quando os trouxe, e voltou-lhe as costas olhando novamente pela janela. Nada fazia para encorajá-la. Evidentemente um assunto que envolvia operações e bandagens lhe era desagradável. Afinal nem "ousara lhe dizer" coisa nenhuma. Mas a desconsideração a havia irritado, e ela descontou em Millie a tarde inteira.

O visitante permaneceu na sala até as quatro horas, sem pedir desculpas por sua intromissão. Ficou a maior parte do tempo absolutamente imóvel; dava a impressão de estar sentado na escuridão crescente, fumando ao clarão da lareira, ou talvez cochilando.

Uma ou duas vezes, um ouvinte curioso poderia tê-lo escutado dirigindo-se às brasas e, por um período de cinco minutos, seus passos foram ouvidos caminhando pela sala. Parecia estar falando sozinho. Depois, a cadeira rangeu; tinha se sentado outra vez.

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Leia a sinopse.

Primeiro Capítulo: Jane Eyre

Primeiro Capítulo: Jane Eyre

Capítulo 1

Jane Eyre Texto Integral
507 páginas

ISBN:
978-85-66798-51-7


Preço: R$ 5,05

Não Havia  possibilidade de dar um passeio naquele dia. Na verdade, pela manhã, tínhamos andado durante uma hora entre os arbustos desfolhados; mas depois do jantar (a Sra. Reed jantava cedo, quando não tinha visitas), o frio vento do inverno trouxera consigo nuvens tão sombrias, e uma chuva tão penetrante, que não se podia pensar em mais exercícios ao ar livre.

Isso me agradava; jamais gostara de longas caminhadas, especialmente em tardes frias; era terrível para mim voltar à casa no gélido crepúsculo, com os dedos das mãos e dos pés congelados, o coração entristecido pelas repreensões de Bessie, a babá, e humilhada pela consciência de minha inferioridade física em relação a Eliza, John e Georgiana Reed.

Os ditos Eliza, John e Georgiana reuniam-se agora em torno da mãe, na sala de estar: ela, reclinada num sofá diante da lareira, com seus queridos em volta (no momento nem brigando nem chorando), parecia inteiramente feliz. A mim, proibira-me de juntar-me ao grupo, dizendo que "Lamentava a necessidade de manter-me à distância; mas enquanto não falasse com Bessie e não descobrisse por si própria se eu tentava seriamente adquirir uma natureza mais sociável e infantil, maneiras mais atraentes e alegres — algo mais leve, mais franco, mais natural, por assim dizer — realmente tinha de me excluir dos privilégios destinados apenas a crianças contentes e felizes".

— Que foi que Bessie disse que eu fiz? — perguntei.

— Jane, eu não gosto de objeções e perguntas; além disso, existe alguma coisa de realmente desagradável numa criança que se dirige aos mais velhos dessa forma. Sente-se em alguma parte; e enquanto não souber falar de um modo agradável, fique calada.

Havia uma pequena sala de desjejum vizinha à sala de estar, e me esgueirei para lá. A sala continha uma biblioteca; logo me apoderei de um volume, cuidando de que fosse um livro cheio de figuras. Subi para o batente da janela; recolhendo os pés, sentei-me de pernas cruzadas, como um turco; e, tendo quase fechado a cortina de morim vermelho, fiquei abrigada em duplo retiro.

As dobras de tecido escarlate tapavam minha visão à direita; à esquerda, estavam as límpidas lâminas de vidro, que me protegiam, mas não me separavam, do melancólico dia de novembro. A intervalos, quando virava as páginas do livro, eu estudava o aspecto daquela tarde de inverno. À distância, ela apresentava uma pálida cortina de neblina e nuvem; perto, um cenário de grama molhada, com a chuva incessante açoitando selvagemente, impelida por uma longa e lamentosa ventania.

Retornava a meu livro — a História dos Pássaros Britânicos, de Bewick: com o texto, importava-me pouco, em geral; e no entanto, havia certas páginas de introdução que, apesar de criança, eu não podia passar inteiramente por cima. Eram as que tratavam das áreas de aves marinhas; das "solitárias rochas e promontórios" só por elas habitados; da costa da Noruega, pontilhada de ilhas desde o extremo sul, as Lindeness, ou Naze, até o Cabo Norte...

Onde o Mar do Norte, em enormes redemoinhos, Fervilha em torno das nuas e melancólicas ilhas Da distante Thule; e a vaga do Atlântico se despeja entre as tempestuosas Hébridas.

Tampouco poderia eu deixar de notar a sugestão das sombrias praias da Lapônia, Sibéria, Spitzbergen, Nova Zembla, Islândia, Groenlândia, com "o vasto círculo da Zona Ártica, e aquelas desoladas regiões de lúgubre espaço — aquele reservatório de gelos e neves, onde firmes campos de gelo, acumulados por séculos de invernos, vitrificados em alturas alpinas, cercam o pólo, e concentram os múltiplos rigores do frio extremo". Desses reinos brancos como a morte eu formava uma ideia própria: sombria, como todas as ideias mal compreendidas que pairam difusas no cérebro de uma criança, mas estranhamente impressionante. As palavras naquelas páginas de introdução se relacionavam com as sucessivas vinhetas, e davam significado à rocha que se erguia solitária num mar de ondas e espuma; ao barco despedaçado encalhado numa costa deserta; à lua fria e espectral que espiava por entre barras de nuvens um náufrago afundando.

Não sei dizer que sentimento rondava aquele cemitério solitário, com sua lápide inscrita; seu portão, suas duas árvores, seu baixo horizonte, rodeado por um muro quebrado, e seu crescente recém-saído, testemunhando a hora do entardecer.

Os dois navios retardados num mar entorpecido, eu julgava serem fantasmas marinhos.

O demônio levando a mochila de ladrão às costas, eu passava por cima rapidamente: era motivo de terror.

O mesmo acontecia com a coisa negra, de chifres, sentada à parte num rochedo, vigiando a distante multidão que cercava um patíbulo.

Cada figura contava uma história; muitas vezes misteriosa para meu entendimento não desenvolvido e meus sentimentos imperfeitos, mas apesar disso sempre de um profundo interesse:' tão interessante mesmo quanto as histórias que Bessie às vezes contava nas noites de inverno, quando acontecia estar de bom humor; quando, tendo trazido sua tábua de passar para o quarto das crianças, deixava que nos sentássemos ao redor, e enquanto aprontava os babados de renda da Sra. Reed, e pregueava as abas de suas toucas de dormir, alimentava nossa ávida atenção com trechos de amor e aventura extraídos de velhos contos de fadas e de baladas ainda mais antigas; ou (como descobri numa época posterior) das páginas de Pamela e Henry, Conde de Moreland.

Com Bewick sobre os joelhos, eu me sentia feliz então; feliz pelo menos à minha maneira. Temia apenas a interrupção, e essa veio cedo demais. A porta da sala de desjejum abriu-se.

— Bah! Senhora Pateta! — exclamou a voz de John Reed; depois ele parou, achou o quarto aparentemente vazio.

— Onde diabos está ela? — continuou. — Lizzy! Georgy! (chamando suas irmãs). Jane não está aqui, diga a mamãe que ela saiu para a chuva... animal ruim!

"Ainda bem que corri a cortina", eu pensava, e desejava ardentemente que ele não descobrisse o meu esconderijo; e John Reed não o descobriria por si mesmo; não tinha nem a vista nem a mente rápidas; mas Eliza acabava de pôr a cabeça na porta, e foi logo dizendo:

— Ela está no batente da janela, certamente, Jack.

E eu saí logo, pois temia à ideia de ser arrastada para fora pelo dito Jack.

— Que quer você? — perguntei, com desajeitada insegurança.

— Diga: "Que quer o senhor, Amo Reed" — foi a resposta. — Quero que você venha aqui — e, sentando-se numa poltrona, sugeriu por um gesto que eu me aproximasse e ficasse de pé à sua frente.

John Reed era um colegial de quatorze anos; quatro anos mais velho que eu, que tinha apenas dez; grande e gordo para sua idade, tinha uma pele fosca e doentia; grossas dobras no rosto amplo, membros pesadões e extremidades grandes. Costumava se empanturrar à mesa, o que o tornava bilioso e o deixava com os olhos turvos e as bochechas flácidas. Devia estar nesse momento na escola; mas a mãe o trouxera para casa por um ou dois meses, "devido à sua saúde delicada". O Sr. Miles, o professor, afirmava que ele passaria muito bem se comesse menos os bolos e doces que lhe enviavam de casa; mas o coração materno recusava uma opinião tão severa, e inclinava-se mais para a ideia mais refinada de que a amarelidão de John se devia ao excesso de aplicação e, talvez, à saudade de casa.

John tinha um grande afeto pela mãe e as irmãs, e uma grande antipatia por mim. Castigava-me e maltratava-me; não duas ou três vezes por semana, nem uma ou duas vezes por dia, mas continuamente; eu o temia com todos os meus nervos, e cada fibra de carne em meus ossos se encolhia quando ele se aproximava. Havia momentos em que me espantava com o terror que ele me inspirava, porque eu não tinha nenhum recurso contra suas ameaças ou castigos; os criados não gostavam de ofender o jovem amo tomando meu partido contra ele, e a Sra. Reed era cega e surda a esse respeito, nunca o via me bater nem o ouvia me maltratar, embora ele fizesse ambas as coisas de vez em quando na frente dela; mais frequentemente, porém, pelas suas costas.

Acostumada a obedecer a John, aproximei-me de sua cadeira: ele passou uns três minutos dando-me a língua, até onde pôde fazê-lo sem prejuízo para as raízes daquele órgão: eu sabia que logo me bateria, e enquanto temia o golpe, pensava na repugnante e feia aparência daquele que terminaria por desferi-lo. Imagino se ele leu essa ideia em meu rosto; porque, de repente, sem falar, bateu rapidamente e com força. Eu cambaleei, e ao recuperar o equilíbrio recuei um passo ou dois de sua cadeira.

— Isto é por sua impudência em responder à mamãe há pouco — ele disse — e por seu jeito furtivo de se enfiar por trás das cortinas, e pela expressão que tinha nos olhos há dois minutos, sua rata!

Acostumada aos maus tratos de John Reed, não tive ideia de responder-lhe; minha preocupação era sobre como aguentar o golpe que certamente acompanharia o insulto.

— Que estava fazendo atrás da cortina? — ele perguntou.

— Estava lendo. — Mostre o livro. Voltei à janela e apanhei-o.

— Você não tem nada que pegar nossos livros; é uma dependente, mamãe disse; não tem dinheiro; meu pai não lhe deixou nenhum; você tem de pedir esmola, e não viver aqui com filhos de cavalheiro, como nós, e comer as mesmas comidas que nós, e usar roupas às custas de mamãe. Agora eu vou lhe ensinar a mexer em minhas estantes: porque elas são minhas; a casa toda me pertence, ou pertencerá dentro de poucos anos. Fique de pé ao lado da porta, longe do espelho e das janelas.

Obedeci, sem perceber a princípio as intenções dele; mas quando o vi erguer e depor o livro, e levantar-se para atirá-lo, instintivamente me desviei para um lado com um grito de alarme; e não foi sem tempo; o volume foi lançado, atingiu-me, eu caí, batendo a cabeça na porta e ferindo-a. O corte sangrou, a dor foi aguda: meu terror ultrapassara seu clímax; seguiram-se outros sentimentos.

— Menino mau e cruel! — eu disse. — Você é como um assassino... é — como um capataz de escravos... como os imperadores romanos!

Eu lera a História de Roma, de Goldsmith, e formara minha opinião de Nero, Calígula, etc. Também estabelecera paralelos em silêncio, que jamais pensara em declarar assim em voz alta.

— Quê? Quê? — ele gritou. — Ela disse isso a mim? Vocês a ouviram, Eliza e Georgiana? Não vou dizer a mamãe? Mas primeiro...

Lançou-se de cabeça para mim, senti-o agarrar-me o cabelo e o ombro; atacava como um desesperado. Realmente o vi como um tirano: um assassino. Senti uma ou duas gotas de sangue de minha cabeça me escorrerem pelo pescoço, e tive consciência de uma dor pungente: no momento, tais sensações predominaram sobre o medo, e recebi-o num estado frenético. Não sei muito bem o que fiz com as mãos, mas ele me chamava de "Rata! Rata!" e berrava. O socorro estava perto, Eliza e Georgiana haviam corrido a chamar a Sra. Reed, que fora lá para cima; e agora ela chegava ao cenário, seguida por Bessie e sua criada Abbot. Apartaram-nos: ouvi as palavras:

— Cara! Cara! Que fúria contra o Amo John!

— Será que alguém já viu um tal imagem de furor? Então a Sra. Reed acrescentou:

— Levem-na para o quarto vermelho e tranquem-na lá. Quatro mãos se abateram imediatamente sobre mim, e fui levada para cima.

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Primeiro Capítulo: Cruzada

Primeiro Capítulo: Cruzada

Capítulo 1

(A Abadia)

Cruzada Texto Integral
119 páginas

ISBN:


Preço: R$ 9,90


A noite estende seu manto sobre uma Abadia, uma imponente fortaleza que se ergue majestosamente em uma colina, delineada contra o céu iluminado pela lua. O ano de 1095, na França, ainda respira mistérios que se escondem dentro de castelos, igrejas e, dentro daquela Abadia singular.

Da penumbra, do outro lada da colina, uma silhueta de um cavaleiro surge. Um cavaleiro, oculto sob uma capa camponesa suja e puída de muito de tempo de uso, emerge como um espectro na escuridão noturna. A silhueta encara a Abadia. Seus traços fortes delineados pela luz da lua e sua capa escondem sua grande estrutura muscular. Montado em uma égua branca, aquela figura transmitia uma estatura intimidante, com músculos forjados em batalhas e treinamentos árduos e pesados. Os seus cabelos escuros caíam sobre seus ombros largos, moldando um rosto marcado, que denota suas quase três décadas. Seu nome é Hagen. Seus olhos penetrantes espiam sob as sobrancelhas franzidas, revelando a determinação que queima dentro dele. Com uma expressão austera, forte e decidida mostra uma determinação inflexível. Sua barba por fazer conferia-lhe um ar de rusticidade e desleixo que o igualava ainda mais a camponeses simples e desafortunados.

Cantos de vésperas e orações se espalham pelos ventos vindo da Abadia e chegam aos seus ouvidos. O rosto de Hagen se ilumina com um sorriso largo. Tocando os calcanhares nos flancos de sua égua, ele galopa em direção à Abadia.

Dentro do santuário da Abadia, arcos góticos testemunham um coro de monges transitando de melódicos cânticos para algo estranhamente similar a Canções de Beuern. Uma procissão se desenrolava, liderada por jovens acólitos agitando turíbulos dourados, preenchendo o ar com incenso denso. Seis sopranos castrati os seguem, abrindo caminho para um corpulento Abade, usando uma mitra de bispo e vestes de vermelho e dourado. Ele é cercado por Novatos adolescentes, que carregam velas e cuidam de sua vestimenta. Um coro de Monges segue, liderado por um Monge Idoso que segura um bastão alto com uma grande cruz de ouro no topo.

A Cruz parece flutuar acima da Procissão. Através de nuvens rodopiantes de fumaça de incenso, em um fundo flamejante de inúmeras velas, sugerindo a paisagem devastada de um holocausto.

Hagen, chega nos arredores do muro da Abadia. Percorre um caminho pela base do muro, espiando as alturas intransponíveis. Ocasionalmente, ele cheira o ar como se estivesse seguindo um odor. Farejando o ar como se perseguisse um rastro. Ao detectar algo, seu semblante se ilumina ao avistar um enorme monte de ossos e entranhas em decomposição, que repousa abaixo de uma abertura lá no alto do muro da Abadia. Seus olhos se fixam neste enorme monte de ossos e entranhas, revelados sob uma abertura no alto do muro. Hagen reage ao ouvir dois camponeses despejando mais detritos da abertura lá do alto, encosta-se rapidamente rente ao muro, escondendo-se dos camponeses do alto do muro.

Com paciência, ele sussurra à sua égua tentando acalmá-la e a conduz para as sombras. enquanto se move furtivamente sob a abertura. Quando os camponeses desaparecem, ele desliza para fora e retira um gancho de três pontas e um pedaço de corda de uma bolsa na sela. Lançados habilmente para as alturas. O gancho completa seu propósito, com um lance para o alto e se assegura na parte superior do muro, nos vigamentos das aberturas na parede. Hagen testa a corda, dando soquetes firmes. Então, se puxa para cima, mão sobre mão iniciando a escalada.

Dentro da Abadia, em uma sala de cúpula alta, adornada com bordados elaborados, melodias fantasiosas ecoavam. Um Alaudista e um Soprador de Pífaro executavam uma música fantasiosa e romântica, de costas para a parede. Em uma cama com cortinas, o Abade levanta os braços para permitir que o seu acólito adolescente loiro remova suas vestes brancas de seda e camurça. Agora despido e com apenas suas roupas íntimas de sedosas rendas, o Abade se ajeita na cama. Estendendo sua mão pálida, acaricia a cabeça de outro acólito de cabelos escuros, que retira seus chinelos e sobe na cama. O jovem loiro de repente agarra a mão do Abade e a beija.

Abade, com um sorriso malicioso no rosto - Ah, com ciúmes?

O Abade os abraça ternamente, saboreando a sensação de seus corpos jovens, prometendo que cada um receberá um belo presente.

O jovem de cabelos escuros se vira e começa uma dança do ventre sedutora, batendo palmas e as solas nuas dos pés no chão de pedra no ritmo da música. O Abade ri com regozijo e deleite.

No matadouro da Abadia, Hagen se infiltrava, passando por carcaças penduradas e barris de vísceras. Na penumbra de uma sala de cura, ele entra em uma despensa enorme e se esquiva de dois Camponeses, recheando linguiças na penumbra de uma sala de cura. Hagen se esgueira pela porta de uma sala de refeições onde outros Guardas estão bebendo. Há risadas enquanto um deles esguicha vinho de uma bolsa de pele no rosto de uma prostituta maltrapilha.

Parando à porta de um edifício principal, Hagen faz uma nota mental de sua posição, em seguida, entra e desce uma escada.

Nos aposentos do Abade, sem se dar conta do tumulto lá fora o Abade, Vestindo uma túnica de seda, pinta cuidadosamente os lábios do acólito loiro enquanto o outro, já maquiado, observa com um bico de desagrado nos seus lábios pintados com um vívido vermelho. Ao terminar, o Abade recua para um gole de vinho e uma avaliação de seu trabalho.

- As princesas precisam de joias. - Ambos os acólitos sorriem. - Sim, isso combina com vocês. Não é mesmo, minhas pequenas devassas? - O Abade belisca as bochechas deles e se dirige à porta abrindo-a.

No corredor um Monge Novato, dormindo em um monte de palha do lado de fora da porta, se levanta apressadamente quando o Abade aparece.

- Chame Monfleurry. Diga a ele que eu preciso de algo do cofre.

O Monge Novato se apressa pelo corredor.

Hagen, carregando uma pequena tocha, desce uma escadaria até uma porta fortemente trancada. Ele retira uma alavanca do cinto, a insere na fechadura e empurra até que a fechadura se solte da madeira. Hagen espreita cuidadosamente evitando ruídos para dentro através da porta arrombada por um longo corredor. No final do corredor, a tocha de Hagen ilumina a riqueza da Abadia, guardada atrás das grades de uma sala do tesouro. Hagen caminha até a porta gradeada, insere sua alavanca e faz força. A porta se destranca. Hagen, impulsionado por sua grande força, empurra forçando-a e a porta de grade de ferro cede e Hagen atravessa tropeçando e cai no meio do tesouro. Deitado sobre montanhas de prata e ouro, cálices e ícones adornados, ele olha ao redor. Agarrando um crucifixo de ouro, o beija irreverentemente e o enfia, rindo, em sua bolsa.

No pátio da Abadia, Monfleurry, o diligente secretário do Abade, nos altos dos seus sessenta anos, cruza os terrenos acompanhado por um guarda. Com um molho de chaves em mãos, entram pela porta que dá acesso à escadaria do cofre. Enquanto isso, nas entranhas da sala-cofre, Hagen faz estragos, fazendo uma caixa ornamental estilhaçar-se contra a parede, espalhando moedas de prata que ele prontamente recolhe, enchendo sua bolsa de couro.

Descendo as escadas, Monfleurry e o Guarda alcançam a porta. Ao notarem o trinco arrancado, trocam olhares de preocupação. O guarda, em gesto silencioso, pede cautela ao colocar o dedo indicador em riste nos lábios, fazendo uma onomatopeia: - Pssst!. Abre a porta cuidadosamente, e ambos espiam pelo corredor.

Hagen, com sua bolsa repleta de tesouros nas costa, assusta-se ao deparar-se com os dois homens no final do corredor. Monfleurry, observando da porta, murmura um "Mon dieu". O guarda o puxa para trás, fechando a porta, aprisionando Hagen na sala-cofre. Apoiam-se na porta, tentando prender o trinco quebrado.

Em um ímpeto, Hagen investe contra a porta, jogando todo o peso de corpo multiplicado com sua força e velocidade. A porta se abre abruptamente, nem mesmo três homens a mais seriam capazes de segurar aquela porta. A força da rebentação quebra o nariz do Guarda e lança-o contra a parede. Monfleurry é arremessado ao chão, enquanto Hagen salta sobre ele e dispara escada acima.

No pátio da Abadia, o pré-alvorecer se aproxima. Hagen passa correndo em direção ao matadouro, saltando uma pequena barreira e assustando um bando de gansos que voam em desordem. Monfleurry e o guarda emergem, gritando "Ladrão! Ladrão! Um ladrão roubou o cofre!" Cães latem, e o caos se instala.

Dentro do matadouro, o pré-alvorecer começa a tingir o ambiente enquanto Hagen, tropeçando, quase cai sobre um campeão adormecido. Nos aposentos do Abade, nu e com a sua carne branca como um rabanete coberta com as marcas avermelhadas de beijos e mordidelas, se levanta da cama, encarando o tumulto no pátio lá embaixo pela sua janela.

O caos se desenrola no pátio, com um Sargento da Guarda, espada em mãos, correndo nu, exceto por uma peça íntima, saindo dos alojamentos seguido por outros guardas em meio à confusão. Campesinos riem do espetáculo, cães latem e gansos voam em todas as direções. O Sargento grita em comando: Soltem os cães!

Na porta do matadouro, Hagen agarra a corda, assobia, e sorri quando o seu cavalo emerge das sombras. "Boa garota", ele diz, mas se lembra de sua promessa. Correndo de volta para a despensa, Hagen procura freneticamente por cenouras. Dois camponeses o encaram perplexos da porta.

- Onde estão as cenouras? Hagen grita com os camponeses. Um camponês aponta. Hagen pega cenouras de um saco e as enfia em sua camisa enquanto um Guarda com uma besta aparece, gritando, e lança uma flecha que se crava em um lombo de porco abatido pendurado próximo a Hagen. Dois outros Guardas correm em direção a Hagen com alabardas.

Com força descomunal, Hagen puxa o lombo de porco abatido e o usa como escudo. Segurando-o pelas pernas traseiras, ele bate com força no rosto de um dos guardas, fazendo-o cair pelo chão. Hagen bloqueia o golpe do outro guarda com o corpo do porco.

Um chute nas partes baixas do guarda o faz cair em uma cuba de vísceras. Hagen consegue abrir caminho de volta para a sua corda de fuga.

Hagen agarra a corda e começa a deslizar, chutando para longe da parede, procurando alinhar sua descida com as costas do cavalo. Guardas aparecem acima, um deles mira uma besta. Hagen se contorce habilmente, desviando-se enquanto uma flecha disparada assobia próximo ao seu ombro. O segundo guarda corta a corda com um cutelo e Hagen desliza cinco metros até cair nas costas da égua. Esta se lança para longe, evitando por pouco uma flecha de outra besta.

No exterior, na entrada da Abadia, o silêncio é quebrado pelos sinos enquanto Hagen contorna os muros a galope em sua égua em fuga. O portão principal da Abadia se abre explosivamente, liberando uma matilha de cães seguida por um grupo de Guardas montados em sua perseguição.

Na penumbra de uma floresta envolta em névoa, já amanhecendo, Hagen galopa entre redemoinhos de névoa, desviando habilmente dos galhos baixos das árvores. Salta com sua égua branca por cima de um tronco caído. Enquanto desaparece na névoa, os cães se esgueiram por baixo do tronco continuando em perseguição, obstinados. Os cães, incansáveis, correm em matilha atrás dele, mergulhando cegamente pela vegetação densa. Num desfiladeiro íngreme, Hagen sente a proximidade dos cães. Incitando sua égua, desce um barranco até um riacho, buscando escapar. Olha para um lado e depois para o outro, esforçando-se para enxergar através da névoa.

Guiando sua égua a cavalgar pelo leito do riacho acima, Hagen avista quatro guardas montados emergindo da névoa à frente, bloqueando o seu caminho. Pronto para enfrentá-los, saca uma enorme espada que é demasiada pesada para homens comuns a brandirem e lutar com agilidade, mas Hagen a empunha facilmente apenas com a sua mão direita, causando calafrios nos guardas vendo aquele guerreiro gigante montado em sua égua branca, galopando em sua fronte empunhando aquela espada assombrosa. Estes, ao invés de confrontá-lo, param e começam a cantar sibilantemente, uma melodia de uma maneira especial, envolvendo mudanças rápidas e frequentes entre o grave e o agudo, podendo serem ouvidos à distância indicando a sua posição para os outros guardas, chamando-os, suplicando por reforço. Os cães se aproximam correndo e latindo avidamente. Hagen tenta avançar pelos cães, mais oito guardas surgem da névoa. Sua égua entra em pânico, empinando e caindo para trás. Hagen aterrissa no riacho com força, sua espada ressoa entre as pedras. Tentando se levantar, os cães o atacam freneticamente.

Um guarda montado tenta acertar Hagen com uma alabarda. Hagen agarra a perna do homem, o arranca do cavalo e o lança no meio dos cães. Outros guardas descem de seus cavalos e cercam Hagen, cutucando-o com suas alabardas enquanto os cães retomam o ataque.

O Alcaide, administrador da Abadia, um homem grande, quase tão grande quanto Hagen, e um Sargento da Guarda se aproximam. Quando os mastins arrastam Hagen para baixo, os homens o batem com cassetetes. Hagen tenta se levantar, mas golpeado repetidamente, desmaia no riacho. Suas cenouras se espalham caídas de sua camisa rasgada.

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Primeiro Capítulo: Ela, A Feiticeira

Primeiro Capítulo: Ela, A Feiticeira

Capítulo I
Meu Visitante

Ela, A Feiticeira Texto Integral
294 páginas

ISBN:


Preço: R$ 5,05

Existem alguns acontecimentos cujas circunstâncias e detalhes envolvidos parecem estar de tal forma gravados em nossa memória que não conseguimos esquecê-los. É isso o que acontece com a cena que pretendo descrever: nesse momento, ela aparece tão clara em minha mente que é como se tivesse ocorrido ontem.

Foi exatamente neste mês, há cerca de vinte anos, que eu, Ludwig Horace Holly, permaneci uma noite numa de minhas salas em Cambridge, para trabalhar em algumas questões matemáticas, não lembro agora quais. Deveria defender minha tese dali a uma semana, e tanto o orientador como meus colegas esperavam que me saísse muito bem. Depois de algum tempo, já bastante cansado, atirei o livro para o lado e fui até a lareira, de onde apanhei um cachimbo, enchendo-o de fumo. Em cima da lareira havia uma vela acesa, e atrás dela, um pedaço de vidro comprido e estreito; exatamente no momento em que acendia o cachimbo pude ver a imagem de meu rosto refletido no vidro, e parei para pensar. O fósforo aceso queimou até chamuscar meus dedos, obrigando-me a jogá-lo fora; mas eu permaneci ali, olhando para minha imagem no vidro e refletindo.

– Bem – disse em voz alta depois de algum tempo –, espero ser capaz de fazer alguma coisa com o interior de minha cabeça, pois com a ajuda de seu exterior seguramente nunca conseguirei fazer nada.

Essa observação com certeza vai parecer um tanto obscura para qualquer um que a leia; na verdade, porém, eu me referia a minhas imperfeições físicas. A maioria dos rapazes de vinte e dois anos são contemplados com algum quinhão, maior ou menor, da graça da juventude, mas até isso me foi negado. Baixo, atarracado e com o peito fundo até quase a deformidade; braços duros e longos, feições pesadas, olhos fundos e acinzentados, sobrancelhas baixas e cobertas parcialmente por um tufo de cabelos negros e grossos, como se uma floresta tivesse recomeçado a invadir uma clareira deserta; essa era a minha aparência cerca de um quarto de século atrás, e ainda é, com algumas modificações, até este momento. Como Caim, fui marcado – marcado pela Natureza com a estampa da feiura incomum, assim como fui agraciado pela mesma Natureza com ânimo e força também incomuns, além de consideráveis poderes intelectuais. De fato eu era tão feio que os elegantes alunos da universidade, embora ficassem bastante orgulhosos de minhas façanhas de resistência e intrepidez física, não faziam nenhuma questão de serem vistos comigo. Seria então de espantar que eu fosse misantropo e taciturno? Seria de espantar que eu meditasse e trabalhasse sozinho e não tivesse amigos, nem ao menos um? Fora escolhido pela Natureza para viver sozinho e tirar conforto de seu seio, e somente daí. As mulheres odiavam a minha simples aparição. Apenas uma semana antes uma delas chamara-me de monstro, pensando que eu não estava ouvindo, e completara dizendo que eu havia conseguido convencê-la da veracidade da teoria dos macacos. Na verdade, certa vez uma mulher fingiu se importar comigo, e com ela desperdicei toda a afeição represada devido a minha natureza. Então, o dinheiro que eu deveria receber foi para outro lugar, e ela me descartou. Implorei que ficasse, implorei como nunca fizera com qualquer criatura viva antes ou depois, pois fora conquistado por seu rosto delicado, e a amava de verdade; e no final, como forma de me responder, ela conduziu-me até um espelho, pôs-se a meu lado e olhou para a imagem refletida.

– Diga-me – perguntou –, se eu sou a Beleza, o que é você?

Isso aconteceu quando eu tinha apenas vinte anos.

E fiquei ali, olhando, sentindo uma espécie de amarga satisfação na consciência da minha própria solidão – pois não tinha pai nem mãe, nem irmão; e ainda estava parado ali quando ouvi baterem à minha porta.

Esperei um pouco antes de abrir, pois já era quase meia-noite e não estava com vontade de receber nenhum estranho. Eu tinha apenas um amigo na universidade, ou melhor, no mundo; talvez fosse ele.

Nesse exato momento a pessoa que estava do lado de fora tossiu; fui correndo abrir a porta, pois conhecia aquela tosse.

Um homem forte, de cerca de trinta anos, ainda com alguns resquícios de uma singular beleza, entrou apressadamente, cambaleando sob o peso de um maciço cofre de ferro que carregava na mão direita. Depois de colocá-lo em cima da mesa começou a ter um terrível ataque de tosse. Tossiu, tossiu, até o rosto ficar quase roxo, e por fim, deixando-se cair numa cadeira, começou a cuspir sangue. Coloquei um pouco de uísque num copo e dei a ele para que bebesse. Depois de beber, pareceu ter melhorado um pouco; mas mesmo com essa melhora seu estado ainda era bastante ruim.

– Por que me deixou parado lá fora no frio? – perguntou, irritado. – Você sabe muito bem que as correntes de ar são um veneno para mim.

– Não sabia quem era – respondi. – Além disso, é um pouco tarde, não acha?

– Acho; e também acho que esta será a minha última visita – continuou, fazendo uma penosa tentativa de dar um sorriso. – Estou acabado, Holly, estou acabado. Não acredito que chegue a ver o dia de amanhã!

– Besteira! – interrompi. – Vou chamar um médico. Ele fez um sinal imperativo com a mão.

– E uma ideia sensata; mas não quero médico nenhum. Estudei medicina e sei tudo sobre isso. Nenhum médico pode me ajudar. Minha hora chegou! Já faz um ano que estou vivendo por milagre. Agora ouça, como nunca ouviu ninguém na vida, pois não terá a oportunidade de me ver repetindo essas palavras novamente. Já somos amigos há dois anos; responda, então: o que você sabe sobre mim?

– Sei que é rico e teve o capricho de vir para a faculdade numa faixa etária em que a maioria das pessoas já está saindo daqui. Sei também que foi casado e sua esposa morreu; e que você foi o melhor, para não dizer o único amigo que já tive em toda a minha vida.

– Você sabia que tenho um filho?

– Não.

– Pois tenho. Ele tem cinco anos, e a vida dele custou a de sua mãe. A consequência disso é que nunca fui capaz de suportar a simples visão do rosto do garoto. Holly, se você aceitar a incumbência, vou nomeá-lo único tutor do menino.

Quase dei um pulo da cadeira.

Eu?! – gritei.

– E, você. Não fiquei estudando seu comportamento durante dois anos para nada. Já há algum tempo eu sabia que não poderia durar muito, e a partir do momento em que tive de enfrentar essa realidade comecei a procurar alguém a quem pudesse confiar o garoto e isso – disse, dando um tapinha no cofre. – Você é o homem, Holly; pois, como uma árvore enorme, seu interior é forte e resistente.

"Ouça", continuou, "esse menino será o único representante de uma das famílias mais antigas do mundo, quer dizer, até o ponto em que se pode traçar a origem de uma família. Você pode rir, se quiser, mas um dia ainda será provado, sem qualquer sombra de dúvida, que meu sexagésimo quinto ou sexagésimo sexto ancestral direto foi um sacerdote de Isis, no antigo Egito, embora tivesse origem grega e seu nome fosse Kallikrates. O pai dele, por sua vez, fora um dos mercenários gregos criados por Hak-Hor, um faraó mendesiano da vigésima nona dinastia, e seu avô ou bisavô, acredito, era o próprio Kallikrates mencionado por Heródoto. Aproximadamente a 339 a.C, na época exata da queda final dos faraós, esse Kallikrates (o sacerdote) quebrou seu voto de castidade e fugiu do Egito com uma princesa de sangue real, por quem tinha se apaixonado. O navio em que viajavam naufragou na costa da África, em algum lugar, acredito, nas proximidades de onde atualmente fica a baía Da lagoa, ou talvez um pouco ao norte; ele e a mulher se salvaram, enquanto todos os demais morreram, de um modo ou de outro. Nesse local os dois enfrentaram grandes dificuldades, mas no final acabaram sendo recebidos na casa da poderosa rainha de um povo selvagem, uma mulher branca de uma graça toda pessoal. Essa mulher, em circunstâncias que não posso revelar, mas que você acabará por conhecer a partir do conteúdo do cofre, se viver até lá, acabou por matar meu ancestral Kallikrates. Entretanto, sua esposa conseguiu escapar – como, não sei – e foi para Atenas; estava grávida, e quando a criança nasceu deu-lhe o nome de Tisístenes, ou o Poderoso Vingador.

"Cerca de quinhentos anos depois a família migrou para Roma em circunstâncias desconhecidas, e ali, talvez com o intuito de preservar a ideia de vingança que havia no nome de Tisístenes, começou a adotar com regularidade a alcunha de Vindex, ou o Vingador. Permaneceram por lá outros cinco séculos ou mais, até por volta de 770 d.C., quando Carlos Magno invadiu a Lombardia, onde eles haviam se estabelecido; nessa ocasião, o chefe da família parece ter se unido ao grande imperador, pois retornou com ele através dos Alpes para finalmente permanecer na Bretanha. Oito gerações mais tarde seu representante direto foi até a Inglaterra, no reinado de Eduardo, o Confessor, e na época de Guilherme, o Conquistador, foi agraciado com muita honra e poder. A partir dessa época, posso traçar minha ascendência sem nenhuma lacuna. Não que os Vincey s (pois essa foi a última alteração do nome, depois que a família fixou raízes em solo inglês) tenham sido de alguma forma importantes; na verdade, nunca chegaram a ficar em primeiro plano. Alguns foram soldados, outros, mercadores; no conjunto, porém, conseguiram preservar um nível perfeito de respeitabilidade, e um ainda mais perfeito de mediocridade. Desde a época de Carlos II até o começo deste século, os Vincey s foram mercadores. Por volta de 1790 meu avô conseguiu fazer fortuna fabricando cerveja e depois se aposentou. Morreu em 1821, e meu pai, que assumira os negócios, acabou com a maior parte do dinheiro. Há dez anos, ele também morreu, deixando-me uma renda líquida de cerca de dois mil dólares por ano. Foi então que empreendi uma expedição relacionada com aquilo – e apontou para o cofre –, cujo final foi um desastre. Na volta viajei pelo sul da Europa e acabei chegando a Atenas. Nessa cidade conheci minha amada esposa, que também poderia ter sido chamada de Bela, como meu ancestral grego. Casei-me, e um ano depois, quando do nascimento de meu filho, ela morreu." Fez uma pequena pausa, apoiando a cabeça na mão direita, e continuou:

– Meu casamento desviou-me a atenção de um projeto sobre o qual não desejo falar agora. Não tenho tempo, Holly; não tenho tempo! Um dia, se você aceitar esse encargo, saberá tudo sobre ele. Depois da morte de minha esposa, voltei a atenção novamente para o projeto. Mas primeiro era necessário (pelo menos assim pensei) obter um perfeito conhecimento dos dialetos orientais, em especial dos arábicos. Foi para facilitar meus estudos que vim para cá. Entretanto, minha doença se desenvolveu muito rápido, e agora estou perto do fim. – E, como se quisesse enfatizar suas palavras, começou a ter outro terrível ataque de tosse.

Dei-lhe um pouco mais de uísque, e depois de descansar um pouco ele continuou:

– Nunca voltei a ver meu filho Léo, desde que ele era um bebezinho. Nunca consegui suportar a ideia de vê-lo, mas dizem que é uma criança bonita e esperta. Nesse envelope – e retirou do bolso uma carta endereçada a mim – deixei por escrito o modo como gostaria que o menino fosse educado. Não é uma educação convencional. De qualquer forma, não poderia confiá-la a um estranho. Mais uma vez, você aceita?

– Primeiro preciso saber o que estou aceitando – respondi.

– Você vai aceitar ficar com o menino, Léo, e viver com ele até que tenha vinte e cinco anos; e não deve mandá-lo para a escola, lembre-se. No vigésimo quinto aniversário de Léo termina a sua tutela, e nesse momento você vai abrir o cofre com estas chaves que estou lhe entregando – e colocou-as em cima da mesa –, deixando-o ver e ler o conteúdo dela, para que possa responder se vai querer ou não se incumbir da busca. Ele não tem nenhuma obrigação de aceitar. Agora passemos às condições. Minha renda atual é de dois mil e duzentos dólares por ano. Se aceitar a tutela, metade dessa renda vai ser transferida a você pelo resto da vida – ou seja, uma remuneração de mil dólares por ano, considerando que terá de abdicar de muita coisa por causa disso, além de cem dólares por ano para pagar as despesas do menino. O resto será acumulado até. que Léo tenha vinte e cinco anos, para que ele tenha algum dinheiro na mão, caso deseje se incumbir da busca a que me refiro.

– E no caso de eu morrer? – perguntei.

– Nesse caso o menino se tornará tutelado do Chancery e seguirá seu destino. Apenas não se esqueça de em seu testamento deixar-lhe o cofre. Ouça, Holly, não recuse meu pedido. Acredite, isso também é para seu bem. Você não foi feito para se misturar com o mundo: isso só iria angustiá-lo. Dentro de algumas semanas se tornará um adjunto da universidade, e a renda que vai receber por causa disso, somada à que vou lhe deixar, permitirá que leve uma vida de ócio e erudição, combinada com a prática de esportes, de que tanto gosta; vai ser perfeito para você.

Fez uma pausa e olhou para mim com ansiedade, mas eu ainda hesitava. A incumbência me parecia muito estranha.

– Faça isso por mim, Holly. Temos sido tão amigos, e não há mais tempo de arranjar as coisas de outro modo.

– Muito bem – respondi –, farei o que você me pede, contanto que não exista nada neste papel que me faça mudar de ideia – continuei, tocando o envelope que ele colocara na mesa, ao lado das chaves.

– Obrigado, Holly, muito obrigado. Não há nada em absoluto. Agora jure por Deus que será um bom pai para o garoto e que seguirá as instruções contidas na carta.

– Juro – respondi solenemente.

– Muito bem; lembre-se, porém, de que talvez um dia eu venha pedir as contas desse juramento, pois, embora esteja morto e esquecido, ainda assim devo viver. Não existe isso a que chamam morte, Holly, mas apenas uma transformação, e (como talvez você descubra no devido tempo) acredito que mesmo aqui, em determinadas circunstâncias, essa transformação possa ser adiada indefinidamente. – E mais uma vez começou a ter um de seus terríveis ataques de tosse.

"Agora", completou, "preciso ir; você tem o cofre, e minha vontade poderá ser encontrada nesses papéis, sob cuja autoridade a criança lhe será entregue. Você terá uma boa remuneração, Holly, e sei que é honesto; mas se trair minha confiança, por Deus, vou caçá-lo onde você estiver".

Não respondi nada, pois na verdade estava perplexo demais para falar alguma coisa.

Ele ergueu a vela e olhou para o próprio rosto, refletido no vidro. Havia sido um belo rosto, mas a doença o destruíra.

– Comida para as minhocas – disse. – É estranho pensar que dentro de algumas horas estarei duro e frio, com a viagem feita, o pequeno jogo terminado. Ah, Holly! A vida não vale seus problemas, exceto quando estamos apaixonados... Pelo menos foi assim comigo; mas a vida do menino Léo pode valer a pena, se ele tiver coragem e fé. Adeus, amigo! – Ê com um súbito acesso de doçura deu-me um abraço, beijou-me a testa e preparou-se para sair.

– Espere, Vincey – disse eu; – se você está mesmo tão doente como pensa, é melhor deixar-me chamar um médico.

– Não, não – respondeu ele com seriedade. – Prometa que não vai fazer isso. Vou morrer, e como um rato envenenado gostaria de morrer sozinho.

– Não acredito que vá lhe acontecer algo – respondi. Ele sorriu, e com a palavra "Lembre-se" nos lábios, foi embora. Quanto a mim, sentei-me e esfreguei os olhos, imaginando se tudo não fora um sonho. Como essa ideia não resistiria a uma investigação, deixei-a de lado e comecei a imaginar o que Vincey teria bebido. Sabia que já há algum tempo ele estava muito doente, mas ainda assim não me parecia possível que seu estado fosse tão deplorável, a ponto de ele poder ter certeza de que não sobreviveria àquela noite. Estivesse ele tão perto da morte, decerto mal conseguiria andar, ainda mais carregando um cofre tão pesado. Refletindo melhor sobre a história, ela me parecia de todo inacreditável, pois naquela época minha idade ainda não me permitia ter consciência de que neste mundo acontecem muitas coisas que o senso comum de um homem normal julgaria improváveis, a ponto de praticamente não poderem acontecer. Só há pouco tempo adquiri plena consciência desse fato. Seria possível que um homem tivesse um filho de cinco anos, a quem nunca tivesse visto desde bebezinho? Não. Seria possível que alguém pudesse prever a própria morte com tanta precisão? Não. Seria possível que alguém pudesse traçar suas origens desde três séculos antes de Cristo, e que essa mesma pessoa repentinamente confiasse a tutela de seu filho, além de deixar metade de sua fortuna, a um simples colega da universidade? Com certeza não. Era óbvio que Vincey estava bêbado ou louco. E se fosse assim, qual o significado disso tudo? E o que havia dentro do cofre lacrado?

Esses pensamentos me desconcertaram e intrigaram durante tanto tempo que no final eu não conseguia suportá-los por nem mais um minuto, e resolvi ir dormir. Tendo colocado dentro da caixa de despachos as chaves e a carta que Vincey havia deixado e escondido o cofre numa mala grande, fui para a cama e adormeci rapidamente.

Parecia que dormira apenas por alguns minutos quando fui acordado por alguém que me chamava. Sentei-me e esfreguei os olhos; já era dia claro – oito horas, para ser exato.

– Ei, qual é o problema, John? – perguntei ao criado que trabalhava para mim e Vincey. – Parece que você viu um fantasma!

– E vi, senhor – respondeu ele –, ou melhor, vi um cadáver, o que é pior. Fui chamar o sr. Vincey, como sempre, e o encontrei rígido e morto!

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